Zero Hora 19/9/2011

Orfeu na garagem
Instalação de Elida Tessler está no espaço de livraria no centro da Capital

A livraria de seu João, defronte a Usina do Gasômetro, tornou-se a única da Capital incluída no módulo Cidade Não Vista, da 8ª Bienal. No projeto, artistas convidados realizam intervenções e instalações em uma paisagem local muitas vezes ignorada por seus habitantes na correria da rotina.

O trabalho serviu também para aproximar seu João de dois novos amigos, a artista plástica Elida Tessler e o professor e tradutor Donaldo Schüler

– São duas grandes aquisições a essa altura da vida – comenta o livreiro.

Elida foi apresentada à garagem dos Livros por Fernanda Albuquerque, uma das curadoras assistentes da Bienal. Foi ao local pela primeira vez em fevereiro, apresentando-se, de início, como uma frequentadora comum. Mais tarde, levou até lá Donaldo – seu colaborador na obra que pretendia apresentar na Bienal.

– Eu fiquei fascinada. Eu vinha muito para esta parte da cidade e conhecia o Gasômetro, mas nunca havia reparado na livraria antes – diz a artista.

Para modificar a loja, Elida imprimiu com técnicas de serigrafia 137 exemplares de livros com páginas inteiramente pretas, e os posicionou em prateleiras ao fundo da loja, junto a enciclopédias. Cada um desses exemplares traz, impresso em tinta prateada, um único poema de Donaldo em uma página no interior do livro – o número está na lombada, o que não torna a procura mais fácil nas folhas pretas sem numeração. Os poemas são uma releitura de Donaldo, tradutor de clássicos como Ifigênia em Áulis e Odisseia, do mito do herói grego Orfeu, o poeta que desce aos infernos para buscar sua amada, aprisionada no reino dos mortos. O professor teoriza:

– O sebo também é um reino dos mortos. São livros muitas vezes oriundos de coleções de pessoas mortas, em edições fora de circulação. O sebo reúne livros mortos e às vezes algum os resgata da morte, como Eurídice.

Um lar entre livros
Seu João dos Livros não é apenas um homem que vende livros, ele mora com eles – os aposentos nos fundos da casa são sua residência. Os fregueses que avançam no corredor depois da garagem onde fica a parte principal da livraria vão parar na cozinha. O fato de ter começado sua livraria com um bom número das obras que ele próprio tinha – e já lera – fez de seu João um tipo de atendente raro de encontrar nas megastores da vida: um erudito autodidata.

Outra parte da intervenção de Elida Tessler na Garagem dos Livros foi espalhar pelas estantes etiquetas de identificação, feitas em impressora e cobertas por uma plaqueta de acrílico. As pretas fazem parte da obra da artista na loja – intitulada Ist Orbita – e trazem todos os nomes citados nos poemas de Donaldo Schüler nos livros pretos (o próprio título vem da tradução do intelectual para o Finnegans Wake de Joyce). As brancas são versões das que o próprio Seu João havia feito a mão para a loja. Elas agrupam as obras seguindo as preferências do dono: há etiquetas específicas para os autores que mais ocupam as estantes, como John Steinbeck, Catulo da Paixão Cearense ou Humberto de Campos.

– O Humberto de Campos é autor de uma obra maiúscula, não sei por que hoje está esquecido e dele se fala tão pouco – comenta o livreiro.

Em sua opinião, José de Alencar, um dos clássicos escolares do Brasil, era muito melhor poeta do que romancista. Já Machado, mestre da prosa, era poeta irregular, o que não impede que seu João considere o poema Uma Criatura (escrito em tercetos, como A Divina Comédia, de Dante) o suficiente para alçar Machado ao topo.

– Mesmo se ele não tivesse publicado romance algum, só com esse poema ele já seria um gênio – diz o livreiro, buscando o livro na estante para recitar os versos.

Seu João também organiza um sarau às segundas sextas-feiras de cada mês. A Bienal também pensa em fazer um, em 12 de novembro, com a presença de Donaldo. Até lá, a garagem, com seus livros antigos e o mais gentil dos anfiitriões, espera sua visita, diariamente, das 9h às 21h.

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